quinta-feira, 8 de maio de 2008

O capitalismo global e as lições do caso Enron

Documentário sobre a derrocada de uma das maiores empresas dos EUA, que pulverizou a poupança e a aposentadoria de milhares de pessoas mostra que não se tratou de um caso isolado. Executivos da empresa levaram às últimas conseqüências brechas do sistema capitalista global. Pode acontecer de novo.

Em 2001, os EUA sofreram dois grandes golpes: o ataque terrorista ao World Trade Center e ao Pentágono, e a revelação da maior fraude corporativa da história, que teve a Enron como protagonista. Sobre esse último episódio, já está disponível em DVD o documentário “Enron: Os mais espertos da sala” (Enron: the smartest guys in the room), um filme indispensável para quem quiser entender um pouco sobre o que aconteceu com a corporação. Não se tratou de um caso isolado de ganância e falcatrua. O filme escrito e dirigido por Alex Gibney mostra a rede de cumplicidade que possibilitou à empresa praticar as fraudes contábeis que praticou. Rede de cumplicidade esta que envolveu grandes bancos, empresas de contabilidade, de advocacia e grande parte da mídia. Além dos desvios legais e morais, o que os executivos da empresa fizeram foi aproveitar e levar às últimas conseqüências algumas brechas abertas pelo capitalismo financeiro globalizado.

Entre outras revelações, o documentário mostra o ataque promovido por funcionários da Enron contra o governo da Califórnia, durante a gestão do democrata Gray Davis. Após praticar um poderoso lobby para aprovar a desregulamentação do setor de energia do Estado, os executivos da Enron aproveitaram-se do novo modelo para provocar apagões no sistema energético da Califórnia, aumentando brutalmente o preço da energia e causando um prejuízo de milhões de dólares aos cofres públicos. Desgastado politicamente pela crise de abastecimento, o governador Gray Davis acabou sendo derrotado pelo ator republicano Arnold “Exterminador” Schwarzenegger, que contou com o apoio da Enron em sua campanha. A sordidez política da atuação da empresa e suas ligações promíscuas com o governo de George W. Bush são apresentadas no filme com fartura de dados e testemunhos.

Mas o mais importante é conhecer as idéias dos executivos da empresa, que mesclavam um idealismo fundamentalista sobre a possibilidade de transformar idéias e expectativas de sucesso em lucros existentes apenas em balanços forjados. Eles realmente acreditavam que, ao se ter uma grande idéia sobre um novo produto, era lícito incluir na contabilidade a expectativa de lucros futuros com a sua comercialização. O problema é quando essas grandes idéias não saíam do papel ou fracassavam no teste de realidade. O que havia sido projetado como lucro nos balanços transformou-se em prejuízos de milhões de dólares. O saldo dessas operações foi trágico para milhares de funcionários que perderam tudo o que haviam aplicado em fundos de poupança e aposentadoria da empresa. Ao final do filme, uma ex-executiva da empresa adverte: não foi à toa que aconteceu o que aconteceu; e pode acontecer de novo com outras empresas.

Condenações individuais e culpas globais
Considerando o impacto devastador que a fraude teve na vida de milhares de funcionários e investidores da empresa, as sentenças judiciais estão sendo brandas com alguns dos principais envolvidos. No dia 17 de novembro deste ano, as autoridades judiciais dos EUA condenaram à prisão dois ex-executivos da empresa. Em um tribunal de Houston, Texas, o juiz Ewing Werlein condenou a pouco mais de três anos de prisão Michael Kopper, principal assessor do ex-diretor financeiro da Enron, Andrew Fastow, responsável pelas “maquiagens” contábeis que inventaram lucros inexistentes. Segundo o argumento da promotoria, de maio de 1997 a setembro de 2001, Kooper aproveitou-se destes truques de maquiagem para desviar milhões de dólares para sua conta particular, para as contas de Fastow e de outros ex-altos executivos da Enron, com plena consciência de que isso prejudicaria fortemente a saúde financeira da empresa e de seus acionistas.

O outro condenado foi Mark Koenig, ex-diretor de serviços ao investidor da Enron, sentenciado a 18 meses de prisão por ter contribuído com a elaboração de relatórios financeiros falsos, com a permissão de seus superiores, com o objetivo de ocultar a verdadeira situação financeira da corporação. Os dois ex-executivos da Enron tiveram sentenças menores do que se esperava em função de terem colaborado com a promotoria. Kopper devolveu cerca de US$ 12 milhões desviados de forma ilícita. Koenig declarou-se culpado, em agosto de 2004, de ter participado na construção da fraude. Ambos prestaram testemunhos contra outros executivos da Enron. Já o ex-contador da empresa, Richard Causey, foi condenado a cinco anos e meio de prisão por ter aprovado a contabilidade falsa que levou a empresa à falência em 2001. Também foi beneficiado com um acordo que evitou que ele fosse condenado a uma pensa de mais de 20 anos de prisão.

Causey assumiu a culpa pela fraude em dezembro de 2005, semanas antes de ir a julgamento juntamente com fundador da Enron, Ken Lay, e com o diretor executivo Jeff Skilling, ambos considerados culpados em maio. Lay acabou “escapando” da prisão, pois morreu vítima de um ataque cardíaco no dia 5 de julho. Ele e Jeff Skilling são personagens centrais do filme de Alex Gibney. Skilling acabou sofrendo a pena mais dura, sendo condenado a 24 anos e três meses de prisão pelo papel que desempenhou na fraude. Segundo o juiz Sim Lake, que sentenciou Skilling, as provas mostraram que o ex-executivo mentiu repetida e sistematicamente aos investidores e funcionários da empresa. Ele foi o último alto executivo da empresa a ser condenado pelo escândalo contábil que transformou em pó mais de US$ 60 bilhões em ações da empresa e mais de US$ 2 bilhões que compunham os fundos de pensão dos funcionários.

Criminalização do globo e globalização do crime
As condenações individuais de alguns dos principais envolvidos no escândalo não atingem, porém, a rede de colaboradores ativos ou passivos pertencentes a grandes bancos, empresas de auditoria e à imprensa especializada no sistema financeiro que durante muitos anos incensou a Enron como modelo de um novo tipo de empresa, uma empresa ousada e inovadora que deveria servir de exemplo a todo o mundo. Elas não penalizaram tampouco as conseqüências políticas da atuação da Enron, como a que ocorreu na Califórnia e que acabou ajudando a levar o “Exterminador do futuro” ao poder. O documentário sobre o caso ilustra uma reflexão do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, em seu livro “Vidas desperdiçadas” (Wasted Lives, 2004), publicado no Brasil pela Jorge Zahar, sobre a face sombria do atua estágio do capitalismo financeiro. Uma face caracterizada, entre outras coisas, por relações promíscuas com o crime organizado.

Ao tratar do que chama de “refugo da globalização”, Bauman afirma: “Uma conseqüência bastante espetacular e potencialmente sinistra dos erráticos processos globalizantes, descontrolados e descomedidos como têm sido até hoje é a progressiva criminalização do globo e globalização do crime. Parte considerável dos bilhões de dólares, libras e euros que todo dia mudam de mão provém de fontes criminosas e se destinam a fontes criminosas. Todos os outros – parceiros e jogadores menores – não têm opção a não ser bajular os poderosos. Na melhor das hipóteses, o sistema jurídico global é constituído de patronos e dependentes, e hoje apresenta (de fato, se não na teoria) uma colcha de retalhos de privilégios e privações. São os jogadores mais poderosos que distribuem, de maneira esparsa, e de olho na preservação de seu monopólio, o direito de buscar a proteção da lei”.

Não se trata apenas, prossegue o sociólogo, do fato de que as máfias globais operam aproveitando-se de brechas nas estruturas jurídicas e institucionais. O importante, destaca, “é que, uma vez libertas de restrições legais e efetivas e dependendo unicamente do diferencial de poder em vigor, todas as operações no espaço global seguem (segundo o planejado ou por falha) o padrão até aqui associado às máfias, ou à corrupção das normas da lei ao estilo mafioso”. A história do colapso da Enron fornece fartos exemplos de como isso funciona.

É particularmente marcante a história da desregulamentação do setor energético na Califórnia, em 2006, a defesa fundamentalista que Ronald Reagan faz do livre mercado (só há “salvação” aí, segundo ele) e o modo como operadores da empresa atuaram para provocar apagões no Estado e aumentar assim seus lucros com a elevação do preço da energia para a população. Os vínculos políticos dessa operação com o Partido Republicano ficam escancarados em uma cena onde, durante a campanha eleitoral, Arnold Schwarznegger, chama o governador democrata Gray Davis de “exterminador do futuro”. O que estava sendo exterminado, na verdade, eram fundos de poupança e de aposentadoria, a soberania de uma unidade federada e, principalmente, a confiança em um modelo que prometia o paraíso e entregou o inferno na porta de milhares de funcionários e investidores.

Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3401

2 comentários:

Profa. Dani Tobias disse...

Espero que esse blog seja um sucesso, assim posso continuar a receber aulas de qualidade em minha formação pós graduação, como as análises e textos confiáveis e
de elevada interpretação.
Obrigada,
Dani Tobias

Paulo T. Matiuzzi disse...

Realmente concordo com a Daniela, a análise do documentário é profunda e confiável. É mister citar a também a utilidade deste blog, bem como o do professor Jaime.

Lá vai meu blog: http://mundocaohasalvacao.blogspot.com/2007/10/fim-do-sculo-pretenes-de-conquista.html